reflexos de vida no silêncio espelhado da água. fragas de vidro em descontinuidades do olhar ...

quinta-feira, maio 22, 2008


de repente ficou leitosa a tarde. o verde da paisagem embebedou-se da cor esbranquiçada que cai das nuvens. os líquens e os musgos nos telhados suspenderam a cor ocre e refrescam-se de seiva. as plumagens são sacudidas uma a uma e os bicos percorrem a poeira dos dias, pousada nos corpos subitamente arredondados das aves. Fustigam os vidros os pingos grossos numa pressa de chegar ao aconchego da terra. parda agora. partem em fúria das alturas e precipitam-se abruptos numa paixão desenfreada de abraços telúricos. os caminhos da água levam-nos aos ciclos de nós e nos padrões descobertos suspende-se o sol entre os dedos. fica a melodia nos tímpanos do barro que nos cobre a abrir caminho para a alma lavada.

segunda-feira, maio 19, 2008



Não sei viver.Nunca soube e tudo o que vivo é difícil. Não sei amar. E tudo o que amei foi distante. Não sei falar. E tudo o que disse foi esquecido. Não sei dar-me. E sempre que me dei fui devolvida. Não sei escrever. Nunca soube e tudo o que sei é nada. Não aprendi a gostar de mim. E sempre que gostei fizeram lembrar-me que não o merecia. Não sei sentir. E sempre que senti foi dor. Desenho um sol e uma flor nesta noite escura e a lua sorri em crescendo.Penduro fios de prata nos cabelos e ilumino o rosto de luz. Penteio os raios de sol que me restam e visto-me na minha pele.

domingo, maio 18, 2008




- Qual a diferença entre solução e dissolução?

- Se colocarmos um membro do governo em ácido sulfúrico e esperarmos que se dissolva, temos uma dissolução; se fizermos o mesmo com o governo inteiro obtemos a solução.


quarta-feira, maio 14, 2008




ei-la de cristal. sugada da mais fina areia. em volúpia de fogo enformada. substância permeável à visão mais opaca.

quarta-feira, maio 07, 2008




Dizem que falar é não estar calado, é proferir palavras, exprimir significados e significantes, é combinar e ajustar sons dentro da consciência fonética de um idioma, verbalizar ideias, dizer de nossa justiça, argumentar, pensar alto, conversar com o outro, (dis) correr sentidos e emoções.

Há quem fale pelos cotovelos, quem fale por falar, quem fale de papo cheio, quem fale grosso e até quem dê que falar...

Por que será, então, que o silêncio é sempre tão gritante?

domingo, abril 27, 2008




minha casa é palafita a dois passos da enchente. deitada na minha cama sinto da água a maré. hoje encheu-se de estrelas que das frestas da madeira fizeram pouso premente. é tão linda a minha casa. já disse que é palafita. passa a água. passa a vida. e ela segura e erguida. em estacas de madeira refresca o chão dos meus pés . nunca tenho os pés no chão. nem no ar está bom de ver. na minha casa há um barco que regressa ao fim do dia e me repousa da faina quando a noite é maresia. a minha casa é na água. no rio onde me banho. só o vento sabe dela e dos segredos que tenho. dentro da minha casa conto as estrelas no rio. são dançarinas flutuantes que me beijam noite fora. velando-me se alguma nuvem se adensa ou se demora. a minha casa é palafita. é de tábuas e tem janela. quando a tarde cai a pique fico ali. olhando as águas. da janela da minha casa limpa-se a vista de mágoas.

sexta-feira, abril 25, 2008


...e a flor da liberdade sorriu no coração de um país...

terça-feira, abril 15, 2008



Rester au lit





dói-me a clara do olho. sinto os arrepios da febre e o tombo do sono. sabes, nunca devia ter fritado os miolos sem uma frigideira anti-esturro.


sábado, abril 12, 2008




a inutilidade do verbo descreve a curva apertada em risco azul que desce do peito e desagua nos pés. derrama-se. nunca o sangue deixou de ferver na palma da mão estendida. sorvido como água inquinada que se cospe na sarjeta do véu prateado que emoldura o bravo. os actos fazem-se noite como quem submerge na cegueira profunda do oceano. flutua a palavra na luz da verdade sem chão. semente apodrecida na terra sangrenta. jaz uma falha negra impermeável à vida. escorrem-se os dias e perdem-se as fontes. cai a tarde prestes a pique nas costas das árvores. erosiva-se o corpo do mundo. comportas de cal viva queimam as paredes da carne. nem no presente se presta o melífluo agora a salvar o futuro. reclama a serenata e visita o céu. veste o fato da graça e refaz-te em dedos e mãos e braços de mar. flutua interiores. descobre nascentes.


segunda-feira, abril 07, 2008




Hoje, sinto-me tranquila. Não aquela tranquilidade de quando era menina. Quando sabia que se roubasse uma rosa para oferecer à minha mãe e a dona do jardim estivesse entre portas a ver-me praticar o delito, eu correria para os braços da avó a pedir socorro e ela resolveria tudo com um sorriso e uma conversa de amigas com a vítima do furto. Não, essa tranquilidade já não a tenho. Perdi-a quando deixei de ter avó, de ter colo onde coubesse, de ter pregas no pescoço de alguém para beliscar até me ficar nuvem a pairar no sono.

“É tão bom ser pequenino, ter pai, ter mãe, ter avós, ter esp'rança no destino e ter quem goste de nós”. (Esta era uma das canções com que a minha avó me embalava)

Passei a ser eu o colo de mim e dos meus. Mas hoje roubei uma rosa. Entreguei-a a quem a merecia e não aconteceu nada, porque a roseira era brava e o dono era o chão que a viu nascer. Atei-a ao coração onde as palavras se prendiam por dentro e me enfiavam um funil na garganta. Afunilando para dentro as emoções em pacotinhos de açúcar e alargando do interior a necessidade de dar.
Não tinha mais nada à mão. Às vezes, nem uma palavra salta da boca no embaraço do momento, só o gesto fala por mim e os olhos lampejantes de palavras (sonsas!) que não encontram a coerência que pretendo.

Toma! Gosto de ti!

Nem isto sai. Mas a rosa, cheia de espinhos rasgou-me a carne dos dedos e marcou a sangue o gesto sem anemia na alma.

Hoje, roubei uma rosa, mas sinto-me tranquila.

terça-feira, abril 01, 2008



a transparência do verde floresce nas tonalidades do estuário onde desaguo. os barcos arribam a proa no sentido da maré e o olhar ondula na margem lavando o lodo onde os peixes vêm comer na minha mão. pássaros camuflados de rochas cinzentas esgarçam riscas brancas em voos de pranto sossego. semeiam-se moedas nas águas da sorte. dias por escalar. escalados com espinhas e sal nas fibras duras que rejeitam o agora. fundem-se as mãos da terra na sede e cedem os dedos a pernoitar gaivotas nos lábios de seda. a boca do mar lava o riso do rio e trocam mensagens de amor e lava na incandescência rubra dum pôr-do-sol sereno anunciando luar. infindável a renovação. o regurgitar do sol no frio de cama escura.


domingo, março 30, 2008



O equinócio aconteceu e esperados são os rasos voos das aves que nos visitam num casamento perfeito com autóctones de condomínios privados nos beirados com janela e nos telhados com observatórios sobre as vastas redondezas.
As cegonhas aprisionaram-nos o país e dão-se bem mesmo nas estações de fuga. Abastece-nos de beleza vê-las lançarem-se em planagens longas e sedutoras, tal não fosse a elegância com que cruzam os ares mas, ver um enorme bando de flamingos cruzando o Tejo, juro ter sido a primeira vez que tal me aconteceu. Não fossem as bandas sonoras da estrada assinalarem perigo de desgovernada condução e da berma me teria aproximado com prejuízo impensável. Tal a surpresa e a sublimidade da emoção.
Registar o momento em fotografia foi coisa que não consegui, mas garanto que tenho ainda os olhos lavados daqueles rasgos de plumagem rosada, pernas e postura de manequim.

quarta-feira, março 26, 2008


A minha avó me diria
que anda o diabo à solta
ao ouvir a ventania.
Mas no coro do momento
os ramos dançam com as musas
em ritmos de alegria.
Sopra e rufa nos cantos
descobrindo desencantos,
segredos de quem diria.
Uivam os lobos à esquina
olhando as pernas da menina
que se descobrem com o vento.
Soçobra a agitação
no mundo da ventania
e liberta a aflição
quando a pele da menina
fica como a da galinha
sem pano de cobrimento.
Oh, que lá se vai a carta
que escrevi ao meu amor!
O vento leva-a pela certa
à morada que deserta
a fecha no esquecimento.
Senhor vento, olhe o chapéu
que mesmo agora comprei
na loja da fantasia
roubou-mo ao dar-me um beijo
com essa aragem lisa e fria.
O beijo dava-lho eu...
mas o chapéu, senhor vento
comprado ainda agora
rodopia desalento
sem uma cabeça por dentro.
Senhor vento, vá-se embora
deixe a Primavera entrar
fresca e morna, morna e fria
na suprema alegria
de renascer do tormento.





segunda-feira, março 17, 2008





juntei à água que corria em regatos de chuva o detergente de sol lavado pelas nuvens e fiz uma bola de sabão. alguém entrou nela por magia e tomou a minha bola de sabão como útero materno. alimentei-a com a seiva umbilical do meu sorriso e tornou-se uma pena no ar que eu impedia de cair. soprando de levinho mantinha a flutuante esfera translúcida num ambiente anti-gravitacional. um dia adormeci e ronquei mais forte, por via de uma obstipação nasal. a bola de sabão saiu da minha íntima atmosfera e foi projectada pela janela entreaberta. sentindo a ausência de brilho e de frescura na boca acordei sobressaltada. olhei pela janela. a bolha rebentou no ar e alguém espirrou desumanidade estatelando-se no chão.




quinta-feira, março 13, 2008



belisca a vida sempre que dói. ela serôdia finge que nem vê que dentro sofre. parte pedaços que a língua lambe num remédio sábio e cola-os com o cuspo da alma. a língua da gente tem sabores de cura e frutos silvestres que saram a míngua. na fartura de ser o sangue ilumina o espírito de tamanho capaz de cicatrizar as penas. e sai a palavra nos poros sabão, lavando as sementes daninhas e os restos de lava escura do coração venoso. veias cavadas no pescoço da hiena embuçada. escorrem lamúrias e lágrimas de demência agridoce em decomposição. soltam-se comportas de mar e sal e empurra-se a onda na sementeira. na estoicidade revela-se a aceitação. na aceitação a saída entala-se na verdade embaciada por não expressa.

quarta-feira, março 05, 2008




trago ao peito um ramo de beijos que apanhei agora ali naquela esquina de vento. vou semeá-los no rosto de quem me olha de longe ou quem me espreita de perto. saibam que na minha ausência há sempre um beijo guardado aqui dentro da gaveta e que salta confortado para um sorriso rasgado ou para uns olhos de moleque que não receberam ainda o carinho por gorjeta. que o mundo no corre-corre se esquece de dar um beijo ou um abraço de irmão parece já coisa batida, mas que mal faz um beijinho dado com tanto carinho para agradecer a visita?




quinta-feira, fevereiro 28, 2008



foges na rua estreita onde caminhas. procuras saídas a cada esquina lúbrica. soltas as asas perras de medo no beco onde te escondes. voo circular na altitude do chão barrento. perpetuas a desdita no desassossego que investe contra ti desconhecendo que é de ti que renasce a cada mão estendida de sol. serenas só. no tormento fungam-se as costas vulcânicas das garras. sente-se o querer no não saber o quê e pernoitas na soleira da porta caída de vagas ininterruptas de desordem. pressentes o perigo na proximidade e aprisionas no escuro o lado brilhante. como se o brilho fosse vergonha. como se os olhos fossem pecados e o coração órgão infesto. aprendes do braille os sinais de fogo e fúria. em acto desumano cegas-te.



sábado, fevereiro 23, 2008






há uma cidade que amanhece para a vida. os olhos cruzam-se em bons dias de sorrisos. a chuva chama impaciente as almas para a dança. dinamene sobrevoa o coração dos poetas e as epopeias repetem-se em novidades lusíadas. nas grutas forradas de amor e palavras crescem lentamente estalactites de calor. o eco soa finalmente lavado dos timbres de rasgos metálicos .

sábado, fevereiro 16, 2008


Não me lembro de ter escrito


Chegam as horas mortas

gastas nos olhos de areia

que varro no lento varejar dos cílios

Seguro a cabeça

do tempo

pensando acarinhá-lo

um pouco

tirá-lo da vazante

Jazem as horas

num avesso de quem precisa de tempo

para respirar

ao anoitecer

Liberto-me de cordas

de limos

penetro no sono líquido das noites

silenciadas

por dias de chumbo.



domingo, fevereiro 10, 2008


Eis-me


Tendo-me despido de todos os meus mantos

Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses

Para ficar sozinha ante o silêncio

Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente

Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca

O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras

E o teu encontro

São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite

Escura e transparente

Mas o teu rosto está para além do tempo opaco

E eu não habito os jardins do teu silêncio

Porque tu és de todos os ausentes o ausente




Sophia de Mello Breyner Andresen