reflexos de vida no silêncio espelhado da água. fragas de vidro em descontinuidades do olhar ...

domingo, março 30, 2008



O equinócio aconteceu e esperados são os rasos voos das aves que nos visitam num casamento perfeito com autóctones de condomínios privados nos beirados com janela e nos telhados com observatórios sobre as vastas redondezas.
As cegonhas aprisionaram-nos o país e dão-se bem mesmo nas estações de fuga. Abastece-nos de beleza vê-las lançarem-se em planagens longas e sedutoras, tal não fosse a elegância com que cruzam os ares mas, ver um enorme bando de flamingos cruzando o Tejo, juro ter sido a primeira vez que tal me aconteceu. Não fossem as bandas sonoras da estrada assinalarem perigo de desgovernada condução e da berma me teria aproximado com prejuízo impensável. Tal a surpresa e a sublimidade da emoção.
Registar o momento em fotografia foi coisa que não consegui, mas garanto que tenho ainda os olhos lavados daqueles rasgos de plumagem rosada, pernas e postura de manequim.

quarta-feira, março 26, 2008


A minha avó me diria
que anda o diabo à solta
ao ouvir a ventania.
Mas no coro do momento
os ramos dançam com as musas
em ritmos de alegria.
Sopra e rufa nos cantos
descobrindo desencantos,
segredos de quem diria.
Uivam os lobos à esquina
olhando as pernas da menina
que se descobrem com o vento.
Soçobra a agitação
no mundo da ventania
e liberta a aflição
quando a pele da menina
fica como a da galinha
sem pano de cobrimento.
Oh, que lá se vai a carta
que escrevi ao meu amor!
O vento leva-a pela certa
à morada que deserta
a fecha no esquecimento.
Senhor vento, olhe o chapéu
que mesmo agora comprei
na loja da fantasia
roubou-mo ao dar-me um beijo
com essa aragem lisa e fria.
O beijo dava-lho eu...
mas o chapéu, senhor vento
comprado ainda agora
rodopia desalento
sem uma cabeça por dentro.
Senhor vento, vá-se embora
deixe a Primavera entrar
fresca e morna, morna e fria
na suprema alegria
de renascer do tormento.





segunda-feira, março 17, 2008





juntei à água que corria em regatos de chuva o detergente de sol lavado pelas nuvens e fiz uma bola de sabão. alguém entrou nela por magia e tomou a minha bola de sabão como útero materno. alimentei-a com a seiva umbilical do meu sorriso e tornou-se uma pena no ar que eu impedia de cair. soprando de levinho mantinha a flutuante esfera translúcida num ambiente anti-gravitacional. um dia adormeci e ronquei mais forte, por via de uma obstipação nasal. a bola de sabão saiu da minha íntima atmosfera e foi projectada pela janela entreaberta. sentindo a ausência de brilho e de frescura na boca acordei sobressaltada. olhei pela janela. a bolha rebentou no ar e alguém espirrou desumanidade estatelando-se no chão.




quinta-feira, março 13, 2008



belisca a vida sempre que dói. ela serôdia finge que nem vê que dentro sofre. parte pedaços que a língua lambe num remédio sábio e cola-os com o cuspo da alma. a língua da gente tem sabores de cura e frutos silvestres que saram a míngua. na fartura de ser o sangue ilumina o espírito de tamanho capaz de cicatrizar as penas. e sai a palavra nos poros sabão, lavando as sementes daninhas e os restos de lava escura do coração venoso. veias cavadas no pescoço da hiena embuçada. escorrem lamúrias e lágrimas de demência agridoce em decomposição. soltam-se comportas de mar e sal e empurra-se a onda na sementeira. na estoicidade revela-se a aceitação. na aceitação a saída entala-se na verdade embaciada por não expressa.

quarta-feira, março 05, 2008




trago ao peito um ramo de beijos que apanhei agora ali naquela esquina de vento. vou semeá-los no rosto de quem me olha de longe ou quem me espreita de perto. saibam que na minha ausência há sempre um beijo guardado aqui dentro da gaveta e que salta confortado para um sorriso rasgado ou para uns olhos de moleque que não receberam ainda o carinho por gorjeta. que o mundo no corre-corre se esquece de dar um beijo ou um abraço de irmão parece já coisa batida, mas que mal faz um beijinho dado com tanto carinho para agradecer a visita?