reflexos de vida no silêncio espelhado da água. fragas de vidro em descontinuidades do olhar ...

segunda-feira, dezembro 31, 2007

sexta-feira, dezembro 28, 2007





A Sereia das Pernas Tortas (bem podia ser um conto de Natal)

Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia como era bonita, as pessoas diziam-lhe:
- Eu amo-te.
E iam com ela para a cama e para a mesa.
Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:
- Não gosto de ti.
E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.
A mulher pediu a Deus:
- Faz-me bonita ou feia de uma vez por todas e para
sempre.
Então Deus fê-la feia.
A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar
com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias. Só os animais
gostavam sempre dela, tanto quando era bonita como quando
era feia como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais
não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço. No poço,
estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a
mastigar.
Logo a seguir, passou pelo poço o criado do rei, que
pescou o peixe.
Na cozinha do palácio, as criadas, a arranjarem o peixe,
descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a
mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o
peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe
foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe
morreu.
As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era
tão feia que não era feia. Por isso, quando as criadas foram
chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei
apaixonou-se pela mulher.
- Será uma sereia ? – perguntaram em coro as criadas ao
rei.
- Não, não é uma sereia porque tem duas pernas, muito
tortas, uma mais curta do que a outra – respondeu o rei às
criadas.
E o rei convidou a mulher para jantar.
Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à
mulher quando as criadas se foram embora:
- Eu amo-te.
Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com
uma azeitona inteira à cabeça. A mulher apanhou a azeitona e
comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:
- Eu amo-te.
Depois comeu a azeitona. E casaram-se logo a seguir no
tapete de Arraiolos da casa de jantar.
Adília Lopes

sábado, dezembro 22, 2007


Gostemos ou não do Natal, tenha ele o significado religioso, dos valores familiares, da amizade, seja ele uma carteira cheia de nada e o coração de coisa nenhuma, seja ele o que for, nesta época de excessos indignificantes, é sempre um tempo de pausa, de balanço, de morte de passados e de renascimento.

Nas luzes do silêncio de cada um, está presente o desejo que o novo solstício se alargue em esperança, em continuidade, em ruptura, em aceitação das mudanças inevitáveis a cada esquina deste presépio onde nascemos, nus, aquecidos por bafos de palha no estábulo ínfimo daquilo que somos. Grãos de areia nas mãos dum vento senhor do tempo que nos varre independentemente da nossa vontade de agregação.

Tempo de afectos dispersos na corrida dos dias onde se perde a verdade da criação do humano. Congrega-se a solidariedade, num ramalhete de dias que perdem as pétalas, o cheiro e a cor com o passar desta data que nos santifica a todos como epidemia inócua e vazia de amor tantas vezes. Datas...simbolismos...num até para o ano que agora vou ali.

Semeemos abraços e motivações para o resto do ano, plantemos sem pressa, salvemos a amizade de esteiras quebradiças de memória.

Que o sorriso me nasça quando o vejo esbanjado em embrulhos, que ele pontifique os meus dias, porque em todos eles há uma criança que nasce!

Que a natalidade vos visite em cada dia, agora e sempre. Ámen!

Escritos de uma ateia.

domingo, dezembro 09, 2007



Ciclo de vida



como um regato de pedras roladas pelos séculos de águas erosivas, vou na corrente fraca. persistente procuro o leito escorreito de artérias livres onde aumento a velocidade do sangue. lavo os musgos lamacentos das arestas por limar e irrigo o peito da terra árida numa dádiva de rega num gota-a-gota de promessas evolutivas. De quando em vez refresco-me em poças profundas de oxigénio. brinco, salpico, mergulho e perduro os segundos que fazem estremecer a eternidade . na hora da emergência, no turbilhão da corrente inesperada, olho o achado perdido e agarro-me às margens com sentido de toca. delibero percorrer todo o ciclo de água para ali voltar. segura de garras e armada de redes férteis de emalhamento sugado no mar do alento. cristalizar o tempo para poder nadar num ninho de carícias ternas de algas e pernoitar nos rochedos sem portas. labirinto sólido na construção dum formigueiro nutrido de vida exalando contornos maduros de escolha.

quinta-feira, dezembro 06, 2007


Afogo imperceptível

ouço a tosse cansada e rouca do tempo, vejo as rugas cruzadas nos corpos, percorro os templos da idade sem misericórdia e oblitero-me de viver, pela metade. rasgo as palavras que saem em desordem e afogo as sementes de pensamento geminado. salvo da tempestade os haveres preciosos em sacos de linho branco e enterro no estrume o puído metal que me ofusca o brilho. solto-me do tempo como folha caída e vagueio ao sabor do vento até encontrar a humidade que me transforme em seiva, alimento e vida. adormeço inerte em lençóis de frio e permaneço na opacidade do tempo esperando um raio de luz que me acorde.

quarta-feira, dezembro 05, 2007


Vertigem dos dias


Deambulo na vertigem dos dias. Cruzam-se as linhas das vidas que se misturam na minha num caldo de letrinhas e palavras com prazo marcado por ausências sentidas e queixumes soltos por ubiquidades devoradoras do meu tempo. Semeio o fruto da minha rotina nas gesticuladas dívidas da minha consciência. Linha de montagem imparável. Absorvo os devotos lavores como um doce estaladiço desagregando-se copiosamente nas mãos líquidas de ternura gulosa. Balanço. Procuro o equilíbrio no descanso do cansaço. Entre o sorriso e a calma. Bloqueios breves de pestanas suspiradas purificam-me a impaciência da espera resiliente na casa do tempo que cozinho em lume brando. Do naco sumarento que me anima e sustenta aqueço-me do frio. No calor do vidro cozido, duro e frágil, perscruto nas janelas transparentes a fuga à opacidade das muralhas num domínio perecedor de visão longínqua, por ser urgente o encargo . Almejo a serra para a caminhada sem tempo marcado e visto-me de força no peito com relevos sólidos para "A escalada do monte improvável" .





terça-feira, dezembro 04, 2007

Deixaste a almofada em casa...

Saías da cama com frio de aconchego, trazias a almofada preenchida de pura lã que desfiavas num rosário de dedos e um "côló" que se arrastava pelo chão como uma sombra de luz. Vinhas no calor da ternura perceber a cama grande onde cabíamos todos. Acordávamos perto do sonho expresso na tua cara de menina serena.
Hoje encontraste-me sozinha no colchão quente- frio da tua ida. Debaixo do braço, a almofada única de algodão e lã que se preservou ao longo da tua vida, menina-mulher. Enlaçámo-nos como nas noites de pesadelos, desta vez tendo presente o sonho do teu futuro.
À porta, as malas da vida mudada para longe, no peito, as portas de esperança que escancarás sobre o Douro numa paisagem que adoras, no coração da mãe, a alegria e o orgulho da rapidez com que conseguiste o teu primeiro cargo sério no mundo do trabalho. Fintaste o desemprego, depois de um estágio de Verão, mesmo antes de liberta da vida académica. Fecham-se em abraços de força e de ternura os corpos que ficam na lezíria que te viu crescer e abrem-se as vontades para um novo voo de independência e sucesso.
Emoção contraditória de perda e de plenitude! Regozijo e melancolia das metamorfoses que soubeste criar na seda da tua existência. Soltei-te há muito no mundo largo, mas parece que foi ontem que te tive pela primeira vez nos braços. Que sejas feliz na tua escolha de engenharia de vida!

segunda-feira, dezembro 03, 2007


Deserto de palavras

ando com as palavras debaixo da língua atadas em molhos. encho as bochechas com os seus sons mudos e elas na libertação desejada percorrem-me da faringe às têmporas e em mergulho agreste dissolvem-se na saliva que a custo engulo arranhando-me as cordas vocais sem piedade. putas das palavras que não se aninham no quente quimo nem se perdem nas flátulas entranhas de recolhimento. durmam que a noite é longa agora. restaurem-se do afogo e protejam-se do frio que se levanta quando adormece o dia. dêem ao sono a possibilidade de paz e possuam num coito tântrico a mensagem com a força grávida do renascer. um dia. como novas e ávidas de viver. meninas travessas que disfarçam líquidas os sentimentos escolhosos da nascente entupida. pedradas no charco fétido sem corrente. barragem abrupta da nascente à voz.