reflexos de vida no silêncio espelhado da água. fragas de vidro em descontinuidades do olhar ...

domingo, junho 29, 2008


voo para sul de mim em listada margem de sobressalto. escavo o norte em nascentes poentes e procuro a estrela polar no centro irrigado de constelações acabadas de nascer. o dia amanhece ao pôr-de-sol. a terra socalca-se de abismos alaranjados e fantasmas de sombras quentes. do corpo do chão erguem-se saguões de penumbra. vultos percorrem os caminhos do porquê. regressam à porta da minha boca. secam-me os lábios e torturam-me a língua. nado cem braços no corpo da lava de terra queimada. um icebergue de fogo eleva-se na torrente. procuro morrer mais um pouco. e rio nos braços da morte precipitada. deixo-a a sangrar olhares. retiro-me. os pássaros sacodem os ninhos à janela das árvores e antecipam voo migratório para a serenidade. solta-se um dossel de seda no céu do meu chão. levito. uma quilha anula o esterno dorido. membros alados prolongam as orlas do corpo. um impulso de vento interno sai pela ponta dos dedos. hélio refrescante forra interiores. alinho vértices pelos pontos cardeais e voo para sul de mim. a este nada de novo. espero que a terra deixe de girar ao contrário.

terça-feira, junho 24, 2008




um dia hei-de ser... frango assado no espeto. de aviário não. frango do campo. carne suculenta e rija. tão rija que me masquem devagar como se fosse ópio. hei-de saciar a fome dos velhos desdentados e sem cheta. saciar as trevas das crianças de olhos esbugalhados para o espanto da dor sem resposta. ser pasto verde para os animais famintos nos carreiros de encosta íngreme onde os plantaram como cabras loucas. ser chuva em abundância no deserto das cidades adormecidas de peneiras. hei-de ser osso duro de roer para cabrões de barriga inchada e sem escrúpulos. hei-de ser relâmpago e trovão em simultâneo. mortífero e sagrado. hei-de ser o que a puta da vida quiser menos simplex de feno.

sábado, junho 21, 2008

sexta-feira, junho 13, 2008



quer o poeta matar a dor. tingi-la de vermelho rubro. sangrá-la do fel que agoniza o instante. soprá-la volátil no espaço da abóbada azul. queimá-la a ferro na franja de carne da consciência. sacudi-la do corpo. ser só palavras e metáforas de alívio. prometer a aurora ao entardecer. ser luz e calor a aconchegar o espírito. quer o poeta brindar com cálice o suco dourado da vida. ceifar o amargo do momento preciso em que se cravaram as esporas. retirar um a um os espinhos tão invisíveis quanto dolorosos. que trabalho árduo o teu, poeta. tens na tinta o caldo inconfundível das cores que revestem o gérmen da dor.



sexta-feira, junho 06, 2008




o corpo abandonado no sono nem sempre dorme. a manha dos sentidos entreabre os olhos de quando em vez e escuta os ruídos da noite vestida de lua e seda. o rocegar das vestes pintam sombras nas pálpebras inquietas. uma noite dormindo senti uma respiração junto ao ouvido. alguém estava ali pairando por cima do meu corpo. aproximava-se lentamente com asas no dorso e filtro na voz. do sono saiu o alerta de estar só em casa. acordei. pressenti nas sombras o silêncio ainda agora quebrado pelo grito que não saiu. certamente era a noite a dar-me o conselho de reaprender a dormir.


segunda-feira, junho 02, 2008






pega nas cartas uma a uma. aposta no modo de as baralhar. com dedos de viciado entendedimento fá-las rodar em cima da mesa. o som da roleta de papel. vezes sem conta. a sorte e o azar na ponta dos dedos. os dedos no cabo do mundo em arribas de abismo e asa delta. fuma. como se ao expirar o fumo exorcizasse o medo de falhar. concentração no sentido sexto. um último enlace no escuro e elas perdidas entre naipes numa imprevista orgia. começa o jogo. habilita os dedos em exercícios de alongamento. relaxa. suspende a respiração e arrisca. lança as bases. alicerça as paredes daquele sonho. constrói em altura a cadeia aleatória com fé no triunfo. a língua entre os dentes. a serra dentária a prometer guilhotina no erro. o gesto preciso. a fuga das palavras. a adrenalina da subida. degrau a degrau. lentamente. a concretização a um passo. um toque. em falso. dois. transpira. liga-se ao eixo. nas tentativas inglórias arrisca a última cartada. sente falta de ar. um aperto no peito. inspira e expira na esquina errada do jogo. cai de uma ameia e na queda sucumbe com o baralho de cartas.