reflexos de vida no silêncio espelhado da água. fragas de vidro em descontinuidades do olhar ...

terça-feira, agosto 29, 2006


Máscaras de mim


Olho-me ao espelho. Vejo o meu rosto. Um rosto ainda jovem, que na tarde quente da vida, me acompanha com um frescor e um viço serenamente maduros. Narcisista, eu? Nem um pouco.

Vagueio pela casa agora vazia. Fotografias antigas interpelam-me. Pego-lhes com cuidado para não perturbar a serenidade daqueles momentos. Instantes cristalizados no tempo, vidas que já vivi espalhadas pela casa. Rostos jovens que já tive. Um retrato meu, feito a carvão, acorda-me memórias de crianças enérgicas e felizes que me invadiram de esperança e de sonhos durante quatro anos. Dádiva de ternura. Gratidão minha.

Outra vez o espelho me atrai. Aventuro-me na imaginação. Engendro um rosto sulcado por rídulas, rugas, sulcos. Mapa de decadência celular e de força gravitacional inevitáveis. Consegui. Estou perfeitamente velha. Procuro manter o brilho irreverente nos olhos. Isso é essência em mim.

A presença daquelas duas matriarcas, deixara-me assim. Narcisista eu? Nem um pouco.

domingo, agosto 27, 2006

Michael Parkes

A chave do amor

O ninho de cegonhas, ao alcance da vista, era promessa de fecundidade certa. Adulto, vacinas em dia, exemplar de peculiar formusura inscrita nos genes e acentuada pelos desvelos de que sempre fora alvo durante a sua afortunada existência, ali estava ele, madrugando docemente com especiais cuidados e enlevos para aquela hora da manhã.
Entre espreguiçadelas e beijos, se ia retirando as remelas insistentes, o cerume pastaso que dos ouvidos faz leito, mas com tanto aprumo, que do equilíbrio se despegava com tonturas prazeirosas e esgares de boca e de olhos que assentavam mal a quem a corte se prepara para fazer.
Despegado da alta costura e em nada necessitando dela, pelo ditoso e abençoado corpo, deu-se lustro ao polido fato, bem escovado de poeiras e de algum pêlo desdenhoso de seu dono. Um pouco de exercício para desentorpecer, necessidades matinais feitas com os descuidos repisados a que se habituara, refeição ligeira para dejejum rápido e, estava pronto a receber a menina que os seus olhos haviam de amar.
A meio da manhã, chega a bendita e esperada criatura. Alta, esguia, morena de olhos e de penugens, dócil no trato, sem ar de pêlo na venta, mas demasiado tímida nas relações, para quem apresenta pedigree de tão alto gabarito.
Ele bem tentou e a tentou, com tudo o que a sua curta experiência nestas coisas do amor, lhe permitia fazer. Mas ela nada. Fugidia. Receosa. Dada a namoros com vadios de desmérito... e agora isto!
Perdeu a cabeça! Possante como é, não desperdiçou esforços para dela se aproximar, não obstante ouvir as recomendações de que devia ser paciente e comedido. Mas depressa deixou de escutar quem quer que fosse, já com o engodo erecto e a lábia que Deus lhe deu. Arreganharam-se os dentes, coisa feia de se ver em seres de origem e porte finos, e lá se acalmaram os ânimos, levando cada um para seu lado entre consolações e promessas de dias melhores. Mais receptivos. Este era o primeiro encontro e nada havia a temer!
Nesta coisa do amor, os géneros ditam diferenças, como se sabe. Se eles são dados a intimidades sem precisão de prelúdios, elas requerem envolvência, romantismo, cumplicidades consolidadas e com provas de afecto, que justifiquem o acto.
A chave do amor não se encontra facilmente! Não se abre o coração de uma donzela, por canina que seja, com um " Ó pra mim que sou lindo! Olha o que estás a perder!".
Pois bem!Em mim, das cegonhas fica o mito. Ainda não foi desta que o meu cão conseguiu acasalar, mas guardado está o bocado para quem o há-de comer!

sábado, agosto 26, 2006



Dissertações...

Longe vão os tempos da minha meninice mas a eles volto com a regularidade das memórias vivas, dos sítios que percorro, dos cheiros sentidos, dos sons que enchiam o meu quotidiano e que agora se tornam alerta e apontamentos de lembrança.

Uma vida guardando dentro e fora de nós tudo o que nos fez assim e não diferentes. Reminiscências de um passado-presente, pela importância , pelo mérito ou desmerecimento tal, que cravou à nossa passagem uma marca inalterável pelo tempo. Sinais distintos no correr dos dias e da vida.

Aqui sentada, ouço o vento que varre a planície, neste dia ainda quente de Agosto. Insiste, hoje, em mostrar a sua força, ensaiando uivos para mostras vindouras. A folhagem das árvores, perdida a quimera da frescura eterna, desnorteada, murmura segredos de dor e de esperança.

Vento que me trás um timido e longínquo cantar de galo, como se de um guarnisé se tratasse. Rapidamente recuo na máquina do tempo instalada no memorial afectivo.

A casa da madrinha. Visitada nas tardes de sábado ou de domingo. Outeiros menos urbanos, então. Espaços bucólicos, onde a liberdade de acção e de descoberta me era entregue de mão-beijada sem repreensões de maior. Menina na casa de filho-homem perdido. Alegria bem-vinda e acolhida entre beijos e aclamações de extremados afectos, para meu regalo e aprovação.

Entre tanques de rega e campos cultivados me perdia, brincando com tudo e com nada. Brinquedos inventados na urgência de quem se diverte com as coisas simples que a natureza oferece a quem tem tempo de a observar.

Pela tardinha, o galo cantava. Canto grave e roufenho como se o cansaço da lide e do tagarelar da capoeira lhe retirasse a limpidez da voz, ao fim do dia. E aquela coisa espantosa que me acontecia em simultâneo" Madrinha, cheira-me aqui a pão fresco!"Entre risos e abraços preparava-se o lanche com compotas, que tu tão bem sabias fazer.

Sentada entre estendais e os últimos raios de sol, saboreava a merenda e os dias de felicidade ingénua e plena que me enchiam de tranquilidade e de paz.

Madrinha, ouvi o galo cantar! Cheira-me aqui a pão fresco!

quarta-feira, agosto 23, 2006



Em terras de Baco


Ainda as vindimas não estão no seu auge nem as uvas em estado de maturação que as justifiquem e já a minha casa, ao fim do dia, tem um cheiro intenso a mosto.

As vindimas começam cedo, por aqui, e a minha descendência passa os dias entre vinhas, adegas, fermentações, laboratórios para analisar o grau do caldo açucarado, que neste início de temporada anda fraco, segundo consta.

Chegam-me em estado de incomensurável sujidade e é tarefa árdua conseguir retirar os restos do suco frutado que se entranha nos tecidos, encorpado por poeiras, engaços, borras e restos de película seca de uva. Detergente e altas temperaturas não removem correctamente os vestígios do trabalho das calças de ganga.

As calças-coitadas- insistem em rasgar-se, expondo despodoradamente partes íntimas das criaturas e fornecendo idéias a abelhas e vespões para ali se ferroarem e fazerem dano.

Gangas modernas, compradas já puídas de fibra e parcas em vida, a preços proibitivos! Mas o ritmo de trabalho, os corpos suados e os movimentos desabridos que a tarefa exige, faz com que não haja remendo que muito dure. Habilidosa de mãos, lá vou costurando remendo sobre remendo, desfazendo exéquias a trapos que não tinham futuro.

Mas a tradição já não é o que era! Agora a maquinaria vai substituindo a mão-de-obra humana. E consoante a necessidade do proprietário e a qualidade prevista para o vinho, ora se vindima de dia ou de noite. Explicações de temperaturas ideais da chegada das uvas à adega para fermentação mais rápida ou mais lenta são assunto comum aqui em casa.

Já lá vai o tempo em que, a esta terra, chegavam grandes ranchos de gaibéus e gaibéuas, vindos principalmente da zona norte do país, para estes trabalhos outonais.

Mas isso, já foi chão que deu uvas! Haja saúde e dinheiro para o vinho!

terça-feira, agosto 22, 2006



Hoje sinto-me assim...

Seis da manhã. O toque do despertador tira-me do sono que começava a ser. "Não posso crer!"balbucio com o rosto enterrado na almofada, sentindo o corpo pedindo descanso. A noite fora curta demais para me recompor, ou sucumbia ali ao remanso aprazível dos dias de férias. Despojar-me daquele ninho aconchegante onde me encontrava foi tarefa difícil de conseguir. Rapidamente, entendo que lá fora a vida se anima e que não há tempo a perder.

O tempo! Que se vira contra mim nestas coisas do madrugar. Custa-me, que querem! Avanço pela noite fora destemida e é com embargo que recebo o novo dia. Desregrado sistema com o qual travo luta assídua e descompensadora.

Coimbra espera por mim, com hora marcada e com companhias pontuais, para quem cinco minutos se transformam em bola de arremesso repleta de desdém para minha arrelia e agastamento.

Arrasto-me penosamente, poupando na higiene diária os cinco minutos( sempre aos cinco!) que perdi resmungando. A água quente e fria tonifica-me. De repente fico (d) esperta!

Seguimos rumo à cidade do conhecimento, embora o que me leva não saia dos arrabaldes. E assisto, aos momentos mais lindos do dia- o nascer do Sol: uma bola de fogo de timidez fugaz proclamando logo ali extravagância e esbanjamento de calor ao longo do dia. Foi às 7 horas em ponto. Informação de somenos para a maioria das pessoas, mas importante para quem anda, como eu, arredada do alvorecer.

Regressámos. Almoço ligeiro foi o que me aprouve e fiquei o resto da tarde com vontade de procurar alívio para a fadiga matinal, nos braços do meu sofá.

Mas se pensam que o fiz enganam-se. Como diz a minha Fernanda"A noite fez-se para dormir e o dia para trabalhar. Se o corpo não dormiu bem de noite , dormisse!"

segunda-feira, agosto 21, 2006

Ainda de férias...


A azáfama diária da casa mostra-me que mesmo de férias da escola nunca conseguirei ficar arredia ao trabalho. Impõe-se-me. Chega de todos os cantos e chama por mim com uma insistência dependente, clamorosa, à qual não consigo virar as costas.
Tentar disciplinar outro pessoal doméstico foi tarefa inglória em mim. Hoje, todos adultos, dóceis no trato e amantes de me verem feliz, são colaboradores mais assíduos e percebem que preciso de tempo. Tempo de olhar de mansinho para o horizonte plano por onde gosto de estender o olhar, tempo de ouvir os chilreios da abundante passarada aninhada nas árvores altas que me ladeiam a casa, tempo para escrever pintando emoções e invasões do espírito.
E o cão. Conversa com ele em linguagem de afectos nunca é dispensada. Sentada no degrau último da escada, com ele por companhia, dividindo o curto espaço. Sessenta quilogramas de um lado, setenta do outro. É um bicho de peso, com olhos de mel nos quais ouso olhar. Dizem que não...que nunca se deve olhar um cão nos olhos por ser sinal de disputa, mas nós já percebemos que não há contenda nem desafio nos olhares que cruzamos. E por cada sorriso lambidela certa, por cada tufinho de pêlo tirado, o corpo se ajeita a procurar o meu colo. Que nem cão nem gato das redondezas tenha o arrojo de creditar sua existência, nestes momentos, que ele como como toiro saído do curro sai em defesa do espaço e do aconchego quebrado.
Que bom! Aqui estou...ainda de férias!

domingo, agosto 20, 2006

O meu cão


Ainda sinto o apelo da praia.E volto sempre que posso com o mesmo entusiasmo da primeira vez que me lembro de ter visto o mar. A mesma ansiedade, o mesmo deslumbramento perante o horizonte líquido. Paleta de cores que marcou para sempre os gostos da minha vida.

Hei-lo!Sempre novo e pujante, ora chão ora revoltoso, tumultuoso. Sua força e estado selvagem exercem, em mim, uma sensual atracção de ser por ele envolvida, beijada. Refresco corporal de aromas intensos e inebriantes.

Foi num dia frio e chuvoso de Dezembro. Um casamento de uma prima levou-me até perto dele, e ali pela primeira vez, aos 8 anos, eu o vi e por ele me apaixonei. Batia na costa com a fúria de um Adamastor. Possante, vigoroso. Sugava a areia como se quisesse engolir a terra para depois a devolver num orgasmo suave de espuma branca que se estendia longamente a meus pés. Sapatos novos tiveram ali o seu baptismo, entre gargalhadas e ralhetes."Leva uma pedra no bolso" dissera-me a minha avó Guiomar. E eu sem pedra no bolso mas com o coração petrificado por tal experiência.
Visitas regulares durante a infância foram ausências sentidas. O trabalho sazonal dos pais assim o determinava e as praias fluviais estavam mais perto das minhas possibilidades de antanho. No rio Tejo, encontrávamos recantos onde nos refrescávamos, ainda o rio era limpo e confiável de águas, embora traiçoeiro nas correntes e redemoinhos. Todos os cuidados eram poucos. Até os meus cães me acompanhavam nesses banhos dominicais. Os meus cães...outra paixão. Deixei o Tejo. Os cães deixaram- me a mim para entrarem nas aventuras do além.
Hoje o cão da minha vida tem nome de rei-mago. Como eu gostaria que ele sentisse o apelo da gruta marítima e seguissemos juntos até ao berço do mar para ali o adorarmos. Mas não gosta de andar na viatura que conduzo. Certamente, preferiria ir de camelo, mas esse animal eu não tenho.
Duas paixões que nunca se cruzarão.


Palhaços!!!


Das artes teatrais, fazer rir é uma das mais nobres e difíceis. O palhaço é normalmente um comediante bem identificado com cabeleira colorida, nariz vermelho,cara pintalgada e aqueles sapatões desmedidos que lhe facilitam a arte de palhaçar.

O palhaço representa uma forma de entertenimento presente em todas as culturas, tendo certamente as suas origens nos famosos bobos da corte. A estes e aos outros sempre lhes foi permitido fazer comentários satíricos, ridicularizar, subverter a ordem natural das coisas e demonstrar os absurdos sociais mostrando as fraquezas humanas no seu máximo explendor, de uma forma eficaz e divertida. Vivam os palhaços!

Agora... assistir a cenas no palco da vida, representadas por péssimos actores da mesma-"palhaços"-que em vez de ridicularizar se ridicularizam, que em vez de divertir nos deixam perplexos e enfadados, que em vez de comentários satíricos são inconvenientes e grosseiros e que nem a indumentária está a rigor, tenham santa paciência!

Será certamente uma ofensa para a tal digna profissão apelidar esta gente de palhaços. (?)

sábado, agosto 19, 2006

Com as calças na mão...

Na passada sexta-feira, quando soavam as doze balaladas( qual conto de fadas inesperado), os professores, deste país, foram surpreendidos pela saída antecipada da lista definitiva de colocações. Louvável medida para tirar da memória o que se passou em anos transactos com os concursos de docentes.
Longe do seu ministério e muitos longe de casa, a gozarem as merecidas férias, foram apanhados de calças... melhor, de calções, paréos, biquinis... na mão. As 48horas que tinham para proceder à aceitação de escola tornaram-se um pesadelo para quem já anda sempre, nesta altura do ano, com o credo na boca.
A terra deixou de girar à volta do Sol. Parou.O céu anunciava tempestade e nuvens negras adensaram-se sobre as cabeças. As teorias de Copérnico e de Galileu foram postas de lado . A maré-cheia e vazia deixaram de ser assunto geocêntrico na vida destes veraneantes. Uma nova esfera armilar feita de anéis de comunicação e de órbitas de viajantes desnorteados, tomou lugar central na inércia daqueles dias.
Se Deus não dorme e nunca vai de férias, deve ser presidente de algum sindicato de professores, que rapidamente veio reclamar o prolongamento do prazo para a aceitação de escola. O bom-senso prevaleceu para os lados do ME e estes profissionais vão poder, até ao final do mês, resolver a situação profissional e usufruir dos dias do descanso desejado.
Acabou-se o estado de suspensão giratória da terra com suspiro generalizado, tendo a situação voltado, por enquanto, ao seu estado normal.
Não fosse o caso dos professores licenciados em Português/Francês, pertencentes aos Quadros de Zona Pedagógica, que foram ultrapassados por professores contratados e que se encontram, neste momento, com horário zero. Esperemos por novas do pressuroso ministério que, no calor da accão, se esquece de acautelar estes pormenores.
A esta hora há, certamente, ainda professores a sacudir a areia das calças que vestiram apressadamente.

sexta-feira, agosto 18, 2006



A rapariga de bronze


O sol anda tímido ultimamente. Tem destas coisas! Mesmo no esplendor do seu reinado esconde-se entre algodão em rama e ali fica atónito, confuso...
É vê-lo aparecer e desaparecer em alveiradas atléticas mas de curta duração. Ainda está em plena forma e há-de ter dias de melhores humores, mas esta melancolia vai dando aso a que o vento , a chuva e o ar frio da manhã e do anoitecer nos venham lembrar os abafos esquecidos nos cantos mais recônditos dos armários.

Mas, enquanto é tempo, a rapariga passa, mostrando ostensivamente o bronze conseguido durante o Verão tão esperado.

Corpo de bronze. Escultura anoréctica de contornos perfeitos.

(Já entra finalmente na pastelaria pronta a degustar o seu bolo de eleição, do qual se privou durante alguns meses para caber no modelito visto na revista de moda. )

Passa segura de si.

O resultado é o esperado:

" Que escultura!"
" Que Bronze!"

E ela feliz.

Só aquela comichão constante nas costas a incomoda. Maldito sinal!

Entre o Sol e as Brumas me situo. A luminosidade e a claridade inebriantes da vida fazem-me apelos constantes para seguir o seu caminho, mas em cada encruzilhada e, inesperadamente, surgem brumas que me obrigam a aguçar os sentidos.