reflexos de vida no silêncio espelhado da água. fragas de vidro em descontinuidades do olhar ...

terça-feira, outubro 31, 2006



Noite das Bruxas

O dia foi cansativo e o trabalho deu-me tréguas tarde e a más horas. Sair de casa depois de jornada pontificada de imbróglios parecia-me coisa que necessitava de poção mágica de animação, que em mim sentia ausente.

A água quente que saía do chuveiro, os odores frescos do gel, shampoo e amaciadores fustigaram-me docemente e exorcizaram-me dos nós enlaçados nos nervos e tendões que me tolhiam o corpo.Sem demoras no arranjo, partia com a certeza que sorrisos amigos me esperavam e que justos me absolveriam de penas que as minhas ausências longas me infligem.

Três mulheres de peso ausente de gravidade. Os abraços como esponja esculpida de amizade e de fluidez de entendimento que nos encanta a todos. Reencontros sempre envoltos de uma ternura que fala com palavras sábias de umas, com olhares profundos e cúmplices de outras, com risos, mãos que se colam e que permanecem em dávida, num reiki de sensações e de cura.

Não foi de bruxas, a noite, mas que teve magia, teve!Chegadas à minha vida pela mão de companheiro a tempo inteiro, do"V. Exª, minha senhora"irónico, com que me presentearam quando as dúvidas do atraso na apresentação o justificaram, ei-las, agora, com a doçura dos diminutivos na fala, com os mimos nos gestos e a verdade no coração.

Um homem entre quatro mulheres! Quinteto maravilha que saboreia estes momentos como manjar divino, que tivemos também, no Dom Pepe, que vindo da Madeira assentou arraiais em Santarém, para excelência do palato.

E quando, noite alta, depois da romaria pela "montra de sabores", esvaziámos três garrafas de um espumante de verde vinho, que de Vila Verde, nos chegou, entre "aleluias! " e "mais nada!"despedimo-nos do enfeitiçamento do encontro com promessas- muitas- de novos encontros, ali logo agendados, que vão do Cartaxo à Croácia. Porque seja onde for, gostamos de estar juntos!

Bruxas? Só se foi para ele que entre as quatro se sentiu enfeitiçado! E da abóbora só ficou o doce acompanhamento ao requeijão!

domingo, outubro 29, 2006

Metamorfoses

À meia-noite fico assim...voo noite dentro!
Procuro luzes no escuro
sinais, sons de vida que me acalmem
vagueio à toa no silêncio das palavras escritas
e elas gritam-me sem dó
destroem , corroem, ressuscitam do nada
voláteis invadem-me
percorrem-me
doem-me.
Lamelas de sonho na retina aberta
do nunca a terra encantada
enxergada, vazia
fria
mergulhos de silêncio em rosto cismado
desencantado
mistura de lua com maresia fresca
refresca
enxerto exíguo de asas brilhantes
me pousam nos ombros
elevam-me o ser
e eu sem descanso adormeço.

sábado, outubro 28, 2006

An apple a day keep the doctor away

Depois de um almoço farto vai uma maçã para jantar.

Festival Nacional de Gastronomia de Santarém

Hoje estive em Vieira do Minho sem sair de Santarém. Na Casa do Campino continua a decorrer até dia 5 de Novembro o Festival Nacional de Gastronomia, um santuário obrigatório para quem gosta da boa comida portuguesa.

sexta-feira, outubro 27, 2006


Goteira

Nestes dias em que as chuvadas têm sido constantes e tumultuosas, em que o meu rio Tejo corre em caudal abundante de lés-a-lés, farto e gordo, avisa a Protecção Cívil que tenhamos as goteiras de nossas casas bem limpas e desimpedidas dos detritos que se vão acumulando durante as estações mais secas. Chegada a emergência da hora, copiosa e torrencial, é ver soldados da paz ajudando inquilinos descuidados de limpezas exteriores.
Venha chuva! Goteiras limpas, calhas desobstruídas, telhas em bom estado, sentia-me segura na casa que me abriga e onde a beleza nostálgica destes dias me remete para confortos outonais para aprazimento meu.
Não fosse aquela dor junto ao ouvido, aquela dificuldade em comer, em bocejar, indispensável ao relaxamento e entrega ao aconchego do lar, e tudo estaria bem por aqui. Mas não! Tinha uma nascente de dor, que se manifestava com arrogante inchaço interior e, insistente como a chuva, precisou de uma goteira. Sim, tenho uma goteira na boca!

"A articulação temporomandibular (ATM) é uma articulação que desliza e roda mesmo à frente do ouvido e que é formada pelo osso temporal (lado e base do crânio) e pela mandíbula (maxilar inferior). Os músculos de mastigação unem o maxilar inferior ao crânio, permitindo-lhe mover a mandíbula para a frente e para o lado e abrir e fechar a boca.A articulação funciona adequadamente quando o maxilar inferior e as suas junções (direita e esquerda) estão sincronizados durante o movimento".

Ao que parece andarei muito stressada( mas porquê? A vida dos professores dizem ser tão calma!) e, possivelmente, durmo com os maxilares cerrados involuntariamente o que terá descompensado a articulação. O dentista ainda me disse para andar, de dia, com a língua entre os dentes, mas eu não vou nessa! Ainda me mordia e morria envenenada!

Pois agora uso uma goteira oclusiva para me proteger os dentes de tal incómodo e incomodada ando com esta calha na boca, que embora invisível pela transparência, à fala deu nova inflexão. Belfa! Sopinha de massa! Assim ando eu!

terça-feira, outubro 24, 2006



Caixa forte

Vejo-as passar. Encantam-me pela ligeireza que concedem a quem ao ombro ou na mão as segura. Leves, minimalistas, arrumadas. Imagino-lhes os interiores perfeitos de ordem e de esmero. Como se possuíssem inteligência e à linguagem das donas não fossem estranhas, fornecem tudo com uma facilidade irrepreensivelmente competente. Prestáveis, servidoras, funcionais. À toillete dou mirada rápida... mas atenta!, não se me vá escapar algum detalhe em voga, mas onde me detenho boquiaberta é nelas. Diversidade nos tons, nas formas, nos materiais. Inovação estética constante e tentadora. Dão toque graduado a quem delas desfruta, pela graça, elegância e... excelência do tamanho.
Tanta competência incita-me à inveja e ao uso.Procuro-as. Revolvo-lhes em movimentos ansiosos as entranhas à procura de passagens secretas para dispensas, caves,túneis, subterrâneos... mas não são visíveis aos meus olhos, nem detectáveis pelas minhas mãos! Nunca serão para mim!
Malinhas de mão pequenas, femininas e lindas de morrer... desabridamente não, obrigada!
Preciso de espaço para pôr tudo o que me é imprescindível: chaves da escola, de carros, de casas daqui e dali, amuletos, agenda, telemóvel, tabaco, pinça, fio-dentário, pastilhas, barras energéticas, garrafa de água, a maçã, os batons, lenços, toalhetes, a carteira recheada de papéis e cartões desnecessários... e eu carregada, torcida, oblíqua, pendular, perdida... sempre, nas arrecadações e armazéns da minha caixa-forte.

segunda-feira, outubro 23, 2006



Ecos do passado

Passado, presente, futuro. Linha cronológica de tempo que atravessamos registando o que vale a pena lembrar, glorificante ou não. O passado é tudo o que temos na nossa história, o que fez de nós o ser de que somos formados e com quem mais intimamente vivemos, com quem dialogamos tantas vezes em silêncio, em monólogos enquistados na procura de sentidos e de redireccionamentos. É nele que bebemos a sabedoria e o senso do momento. De quem se cruzou connosco ficam as marcas da passagem, anotações de grafia intrínseca, mais cuidada ou rabiscada conforme o merecimento do acontecido. Mas a história é a nossa e não devia ser vivida em função da dos outros.

Quantas vezes nos tornamos secundários quando era nosso o papel principal? Quantas vezes deixamos para os outros a escolha do nosso presente, descorando o futuro? Não nos sentindo anulados. Espanto! Mas entendendo que a mim tudo me é suportável e relativo enquanto que para os demais, e falo aqui dos que me são mais próximos e queridos, transcende o inaceitável de forma dolorosa e fermente.

Mas que lucidez insana é esta que me atravessa? Que calma é esta, que nos momentos de crise me faz pausar a voz em meditação na procura da saída, não repisando o olhar para o que de feito não tem remédio. Que sangue me corre nas veias? Serei barata travestida de mulher? Às pisadelas não dou reputação nem assentimento, pois não me sentindo vergada, esbarram na minha integridade sem nódoa de indiferença em mim, mas alongando-me, dúctil, na doçura do perdão.

Não sou deste mundo já!

domingo, outubro 22, 2006



Sonho

Do inconsciente tunante vem-me o mergulho na água pura e cristalina. Morna e serena de tumultos. Numa apaziguadora descoberta de ser guelras o que possuo no corpo, adapto-me ao meio. Como se ao mergulhar metamerfoses internas me mostrassem que me sinto como peixe na água. Dentro ou fora dela?Dentro ou fora de mim? Conjunto de idéias confusas e disparatadas, que durante o sono, se apresentam ao espírito em forma de fantasias, medos, utopias, aspirações.

"Água clara e calma garante a tranquilidade do momento actual, já água turva designa dificuldades a serem vencidas. Quando, além de turva, a água estiver agitada é aconselhável que se evite discussões desnecessárias, pois o resultado poderá levar ao rompimento de amizades ou amores. Se tomava banho e a água estava numa temperatura agradável - morna ou quente - pode contar com amigos sinceros; mas se provocar incómodo ou dor é possível que venha acontecer rompimentos. Se você nadava em águas calmas, espere comunicação de aumento salarial ou uma viagem, há tempos desejada , acontecerá."

Assim, aparentemente, não tenho nada a temer. Mas falta-me a interpretação freudiana para me dar mais sustento à convicção. Neste dia salpicado de chuva e de vento um sofá e psicanálise vinham a calhar.

sábado, outubro 21, 2006

Aos meus amigos

Mail vadio que nos soca o estômago em dias cinzentos.

"Um dia, a maioria de nós, irá separar-se. Sentiremos saudades de todas as conversas jogadas fora, das descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos, dos risos e momentos que compartilhamos. Saudades até dos momentos de lágrima, da angústia, das vésperas de finais de semana, de finais de ano, enfim... do companheirismo vivido.
Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre. Hoje não tenho mais tanta certeza disso. Em breve cada um vai pra seu lado, seja pelo destino, ou por algum desentendimento, segue a sua vida, talvez continuemos a nos encontrar quem sabe...... nos e-mails trocados.
Podemo-nos telefonar, conversar algumas bobagens.... Aí os dias vão passar, meses...anos... até este contacto se tornar cada vez mais raro. Vamo-nos perder no tempo....Um dia nossos filhos verão aquelas fotografias e perguntarão? Quem são aquelas pessoas? Diremos...que eram nossos amigos. E...... isso vai doer tanto!
Foram meus amigos, foi com eles que vivi os melhores anos de minha vida! A saudade vai apertar bem dentro do peito. Vai dar uma vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente...... Quando o nosso grupo estiver incompleto... nos reuniremos para um último adeus de um amigo. E entre lágrimas nos abraçaremos. Faremos promessas de nos encontrarmos mais vezes daquele dia em diante. Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a viver a sua vidinha isolada do passado.E nos perderemos no tempo.....
Por isso, fica aqui um pedido desta humilde amiga : não deixes que a vida passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de grandes tempestades...Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!"

[Just silence]

quinta-feira, outubro 19, 2006


Em desespero fui à taberna

Possuiu-me. De dia ou de noite não me larga o corpo. Sou sua enquanto quiser, já percebi! Faço de tudo para que me deixe, me abandone, mas a sua insistência não me dá descanso. Na cama, sacode-me, faz-me contorcer, acelera-me os batimentos cardíacos, descompassa-me a respiração. Atiro com a roupa para trás ...preciso de ar. De dia, vergasta-me com a fúria de um tornado em movimentos cíclicos de pôr a cabeça à roda. Pudera...480 Km/h!
Estou em brasa, febril...da fúria da tosse!

"A tosse é uma contração espasmódica, repentina e quase sempre repetitiva da cavidade torácica, resultando em uma violenta liberação de ar dos pulmões, e sempre acompanhadas por um som distintivo. Uma tosse é sempre iniciada para limpar uma formação de fleuma (muco) na traquéia; o ar pode se mover por esta passagem até a 480 km/hA tosse é um reflexo extremamente útil, que permite limpar o tracto respiratório (laringe, traqueia e brônquios) de substâncias estranhas ou irritantes."(Wikipédia)
Em desespero de causa travei a fundo, projectada que ia por um ataque de tosse e fui à taberna. "Quero matar o bicho que me consome por dentro!" e, entre delírios da tosse e da aguardente ouvi alguém dizer: "Fuma mais!"
Aceitam-se mezinhas!

quarta-feira, outubro 18, 2006

Pranto no breto

Ficha da Caixa, vinheta da ADSE, quando a bota não bate c'a perdigota quem sofre é o Zé. Pagas não pagas e voltas p'ra dar dás-lhes o dinheiro e toca a marchar. Seguro inseguro será que dará?, arrota pelintra por agora já está! Malas cavalinho com cara de burro, relincha, zurra ou então fica mudo. Mudo mudastea, icetea ficou, goela refresca e ice não precisou. Obrigadas, obrigadinhas, obrigadésimas, obrigadar de tanto volteio já está a enjoar. Enjoa, enoja e dá que pensar, gato esticado c'as tripas ao ar. Quem te pisou não houvera de travar ou sentido-rato tinha o miar. Voo de pássaro de mergulho prenho, não fujas ratinho que já eu te apanho. De bandulho cheio piou alegrado, o gato estendido e o rato papado. Petisco rabisco na vinha desavinhada , quem te avinhou chama à terra amada. Ligas, não ligas, desligada ficou, palavras não ditas ninguém adivinhou. Chove não chove vento na janela, água pingada sopas na tigela. Quentinha c'a tosse dela precisou, mel das abelhas que a tosse aguçou. Camisola branca de azul ficou, salpicos de tinta a dona amuou. Dia da gaita sem pingo de glória, pim...pam...pum...acabou-se a história.

segunda-feira, outubro 16, 2006

Gustave Doré

Divina Comédia?!Quase.

..." E eis que, ao subir da encosta, estava alerta

UMA ÁGIL ONÇA PRESTE NO SEU POSTO,

que de pêlo malhado era coberta;

e sem sair da frente de meu rosto,

tanto impedia aquele meu destino,

que a vir-me embora me senti disposto."

Dante

Correndo o risco de estar a ser dramática, sinal do estado pleno de revolta, assim vejo a vida dos professores, neste momento.

domingo, outubro 15, 2006

Carlos Reis
Engomadeiras

Hoje acordei assim. Com um prolongamento de ferro no braço direito. De ferro já só têm o nome, que eles agora são feitos de ligas leves para facilitar a tarefa! A música ou a televisão para preenchimento dos neurónios e alisamento das rugas que se cravam no meio da testa minimizam a monotonia do trabalho.E mãos à obra! Se à música damos ouvidos, do ferro fazemos bailarino do Bolshoi em coreografias rebuscadas percorrendo o palco da tábua, envolto em nuvens de fumo para criar um ambiente místico a condizer com a melodia. Se da televisão vem a distracção do momento...depende. Hoje andei com os Gatos Fedorentos em busca do sítio "onde se encontram gajas boas, memo boas, daquelas memo munta boas, que um gajo olha e diz : eh, pá! São memo munta boas!"Não cheguei a sitiá-las. Eles também não. Afinal a gaja boa que eles viram era uma bichona. Acontece!

Mas para entretenimento dei por mim cantarolando "Água fria da ribeira, água fria que o sol aqueceu....seis corpetes, um avental, sete fronhas e um lençol, seis camisas..." Um enxoval completo!

Lembrei-me das trouxas de roupa que mulherões de antigamente, levavam à cabeça ou em carroças, para os lavadouros municipais e para as valas e ribeiras. As mulheres daquele tempo sabiam caminhar numa postura correctíssima, à força de transportarem fosse o que fosse em cima de uma rodilha. Tinha técnica a rodilha, tecida que era no tear dos dedos e, no remate, a arte de resistir à caminhada árdua. Sempre alegres, faceiras, de rosto corado pelo sol. Cantarolando ao desafio, enquanto a roupa corava.

Tudo lhes saía do corpo num esforço desmesurado, sem máquinas de lavar, sem secadores de roupa, sem ferros eléctricos com caldeira e a vapor, com borrifadores integrados. O duro trabalho agrícola, desde a infância, pacificou-as na obediência, sacrifício, madrugadas, labores de sol a sol.

Roupa dobrada e borrifada, brasas no ferro, era pela calada da noite, enquanto todos dormiam, que passavam a roupa alva de brancura, em cima de mesas acolchoadas de cobertores velhos que amparavam os tecidos e suavizavam a passagem do ferro. Era na valentia de carácter que se distinguiam.

Tenho de ligar ao Ricardo Araújo...afinal já sei onde se encontram as mulheres boas, mesmo muito boas, que só de pensar nelas acho que foram do melhor!

sábado, outubro 14, 2006


Leve acordar

A beleza outonal com que o dia amanheceu pede saída de casa, em busca de carícias paisagísticas para a vista e para a alma. Acordo cedo sem o motim dos trins que durante a semana brigam comigo e levam a melhor apesar de me entartarugar na carpaça quentinha que me cobre o corpo. Sei de cor a dureza que exercem em mim esses despertares indesejados. Mas, chegado o fim-de-semana, espreito o dia quando o corpo rejeita a cama, inacreditavelmente cedo, para poder sorrrir a seguir e, pensar entre espreguiçadelas e aconchegos, que o tempo pode esperar um pouco por mim. Perco parte do dia, mas ganho em disposição e sossego de espírito.

A rotina matinal altera-se e, fora dos prazos para fazer as tarefas, reencontro prazeres renovados que me alimentam a paz. Primeiro, a volta à casa para perscrutar quem sempre se me adianta na alvorada. Ronronares de mimos fazem-se sentir em linguagens que só o afecto conhece. Comunicação e idioma universais que dispensam legendas e esclarecimentos ficando das figuras tristes o estilo. Logo de seguida, o cão espera uma dose do mesmo. Merecida para quem velou, toda a noite, pela segurança do lar, afastando indesejadas visitas só com a sua voz de trovão, avisando corpanzil majestoso. Dá para o gasto, fica a mais-valia da ternura.

Subo a escada-caracol que me encaminha ao sotão [abrigo meu] e abro a porta-janela que me desvenda a lezíria a meus pés. Os tons acobreados vestem-na de luz e beleza e a frescura da manhã tonifica-me os sentidos. Sente-se uma cedência terna do Verão em concílios assertivos com o Outono que se instala mansamente.

Vou sair e olhar mais de perto as mesclas escarlate das castas tintas. Da paleta outonal a cor que mais me seduz e fascina.

sexta-feira, outubro 13, 2006

"A salto" à cidade
Morava num rés-do-chão alto. Habitação social fora o que conseguira quando chegou à cidade. Na mala de cartão, as posses de quem pouco tem, mas transbordando a vontade, a intenção e o ânimo, no coração apertado entre o receio e o desejo de vencer.
De longe lhe chegam ainda os ecos das vozes persuasivas e avisadas da mãe. A grande cidade e o instigar estimulante e traiçoeiro das suas entranhas. Filha de amores serviçais a que a mãe se entregara quando interna ficara como criada, nos tempos da sua juventude, sabia do que falava a idosa de olhos tristes e ausentes, que ficara para trás.
Uma vida sem histórias masculinas para contar, pela ausência de pai que nunca conhecera e que a afugentou ainda no ventre materno, expiando logo ali as culpas de desejos alheios e cobardes. Ficara-lhe aquele ar macio e sedoso que constratava com as feições robustas e rudes que da família materna eram matriz. Viva e ladina, distinta nas maneiras que a mãe soube observar e cuidar para o seu rebento, encantava os olhares de quem a enxergava.
Só os pés de sola e lixa denunciavam origem e os caminhos calcorreados entre valados, na companhia pachorrenta dos animais que levava e trazia do pastoreio.
As faces que nos ares puros da serrania, ganharam as cores vivas da saúde, permaneciam rubras de exaltação pela vinda à descoberta do não reconhecido e estranhado, negando ainda os ares salobres da cidade.
Trazia no corpo de menina um fato rebuscado no baú materno, entre lágrimas e lembranças. Recordação duma avó que nunca a vira a ela, nem rumos tivera quanto ao fato que desapareceu naquele dia em que lhe anunciaram a descendência indesejada.
O trabalho doméstico que lhe prometiam era livre de assédios para descanso da mãe. E aquele homem do táxi tão prestável e simpático, a disponibilizar-se para qualquer ajuda na descoberta da Invicta. Sentia-se protegida. A mãe podia dormir descansada. A história não se repetiria.

segunda-feira, outubro 09, 2006




Praga...sonho de pedra


Ainda a descer do avião... a desfazer as malas de roupas e memórias ...
Praga! Uma cidade das mais lindas que conheci até hoje a encher-me de vontade de voltar!
Do seu castelo de conto de fadas à sumptuosidade dos monumentos que se descobrem a cada esquina; da sua imponente arquitectura imperial à beleza de ruelas românticas...uma conjunção de estilos e harmonia invejáveis.



domingo, outubro 01, 2006



Matança do porco

Só tenho um cão. Mas já tive muitos cães, gatos, porquinhos da índia, carneiros, ovelhas, cabras, cabritinhos lindos, burros, éguas, mulas, cavalos, galinhas, patos, vacas e... porcos( desculpem-me se esqueci alguns, mas a memória não perdoa). A muitos vi-os nascer, alimentei outros tantos com biberons e seringas, cantava-lhes músicas de embalar para os sossegar, embrulhava-os em cobertores quentinhos quando o rigor do tempo me tingia de dor só de pensar que os animais não podem vestir abafo, embora fosse uma tarefa árdua e de pouco proveito pela ingratidão demonstrada. Brincava com todos eles com uma alegria maior que eu. Cresci vendo crescer animais à minha volta. Adoro-os.

As matanças dos porcos eram uma festa um pouco enlutada para mim. Reunia-se a família toda à volta do porco e mais tarde da mesa. Os homens madrugavam para tratarem da saúde ao suíno e ele grunhindo parecia chamar por mim. Escondia-me. Não o queria olhar nos olhos. Sentia-me cobarde por não agir e me interpor entre ele e o facalhão afiado que o esperava. Os mulherões da família riam-se de mim e o tio João, sensível a estes sofreres, chamava-me para o seu colo e explicava-me a cadeia alimentar de uma forma simples e doce que me aliviava a alma cingida no corpo pequeno. Depois enchia a bexiga do bicho e vinha dar-ma para eu jogar à bola com a criançada. Receosa, primeiro, depressa me entregava ao prazer da brincadeira. Não gostava de ver o bicho desventrado e dependurado, ali o dia todo, mas fui enrijando as emoções embora, ainda hoje, tenha dificuldades em assistir a estes rituais da morte.

Não gosto de animais!- disse-me ela na matança do porco. Amareleceu-me o sorriso. Apeteceu-me tirar-lhe da frente o prato cheio à ganância de carne e enchidos e mandá-la comer couves. Não gosta não come!