Vi-a hoje. Trabalhei com aquela mulher alguns anos e dela trazia as lembranças inteiras de ter ensinado a minha filha a ler. Uma profissional dedicada, inovadora, atenta aos seus alunos, senhora de uma cultura que recolhia na vida como mata-borrão. Uma leitora devota que sabia desbravar vontades na cativante aventura de saber.
Com os anos afastou-se da componente lectiva, o barulho das crianças incomodava-a, tornou-se irritável e indiferente ao mundo, apática sem ermo num mundo de antidepressivos e psicossomatismos inerentes. Exageradamente gorda, arrastava no andar lento um pesar que se amortalhava nos olhos baços postos no chão, no desalinho da figura sobressaía um ventre imenso de solidão e um sorriso triste de quem tem fome no peito. Mostrava-me timidamente a poesia que escrevia desde há muito e eu via o inconformismo no grito das palavras que morriam no papel amarelecido pelos anos, a latência duma vida pela metade, a simetria dos dias sem brilho que lhe raptaram a essência. Aposentou-se e deixei de a ver.
Apareceu-me hoje do nada. Dos cabelos crespos surgiram-me uns longos e sedosos cabelos negros dos quais pendia uma fita colorida bem coquette, uma maquilhagem ligeira matizava um rosto sereno onde as sardas enfeitavam alegremente um sorriso rasgado, os olhos recuperaram a doçura e coadjuvavam os lábios nas palavras por dizer...sem necessidade de pressa. A postura de rosto erguido resplandecia juventude, as roupas seduziam os olhares, a graciosidade das formas num corpo sem memória em mim.
Divorciou-se. Emagreceu. Entrou para a Universidade da Terceira Idade. Organiza tertúlias de poesia. Apaixonou-se. É feliz.
2 comentários:
Ainda bem que a nossa M... soube encontrar outro rumo para a sua vida.
Estamos sempre a tempo de inverter o sentido de marcha!
.. e atrevo-me a acrescentar será ainda mais feliz .. estou certa .. se tiver acesso a este pedaço fabulosamente detalhado .. brilhante texto minha amiga .. como sempre *
Abraço e beijinho
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