Vestiu-se de amor na despedida
Deitara-se tarde, preparando e ansiando o amanhã. Sabia de seu aquela tendência infantil de antecipar guloseima que lhe pintasse de azul o céu dos dias. Entrava na última semana de Agosto com a certeza que, daquele fim de Verão, lhe sobrariam dias de calma e isenção de cuidados. Novos horizontes lhe permitiriam restabelecer-se da afadigada vida que levava. Do cansaço tinha-lhe tomado o gosto por ser prazer o que lhe trazia existir, mas umas férias longe dos lugares costumeiros seriam uma ode ao prolongamento da mestria com que governava a vida.
Quando o telefone tocou para a despertar à hora marcada, já há muito se havia levantado. Na frescura da manhã, inesperadamente ventosa, sentiu pousarem-lhe as asas que a haviam de levar para destino paradisíaco onde o corpo se despediria do Verão. Partia só. Deixava para trás a certeza de um rompimento amoroso que prometia e descomprometia com uma imberbe e silenciosa indiferença. Não tinha paciência para arrastar situações de dependência mal resolvidas e tomara a dianteira no corte que a ligava àquele homem sem mote que a motivasse.
A viagem foi tranquila, com a descolagem deixava para trás o desencanto lavado com pingos de chuva que salpicavam caprichosos a aurora lisboeta. Linda a cidade!, melhor seria quando voltasse restabelecida e a apreciasse de outros ângulos, com olhos repousados na distância e emocionados no sabor do regresso.
Entre espreguiçadeiras e banhos quentes de areia e mar, sentiu a vida prenhe entrar-lhe nas veias com um vigor de quem sabe apreciar o que a natureza nos dá quando nos entregamos à lavagem centrífuga da alma. Olhava os outros com a sabedoria e a terna vertigem de saber amar.
Uma criança que vendia bugigangas na entrada da praia pediu-lhe sem falar que a acarinhasse. Baixou-se interessada no que ela fazia e pousou o olhar naquelas mãos pequenas que maquinalmente inventavam sobrevivência. Artesão da vida com saberes adicionados na necessidade. Sorriu. Lentamente ergueu o olhar e encontrou aqueles olhos enormes de um castanho amendoado pintalgados de solidão e carinho. Ficaram parados presos um ao outro num fio que se enrolava no peito. Era como se aquele olhar já fosse seu por ser conhecido. Abanou o pensamento e preparou-se para comprar uma daquelas peças tão belas quanto naifs. Mas a criança disse-lhe num tom de voz surpreendentemente calmo e maduro: Leva, foi feito para ti!Obrigado por observares o meu trabalho. Volta mais vezes, tens uns olhos tão doces e és tão bonita, que me atrais mais clientes.
Olhou em volta e percebeu que se encontrava rodeada de pessoas que como ela pegavam nas peças e se prendiam a elas como a amuletos. Ficou ali sem noção do tempo e, na entrega do presente, tocaram-se as mãos, ásperas e quentes as da infância roubada, macias e trémulas as dela. Mas a suavidade com que o menino lhe limpou o rosto despertou nela a certeza de que não seria a última vez que o veria.
( Projecto de conto escrito a posteriori para uma brincadeira séria do sem pénis nem inveja. A intenção de participar assistiu-me desde a primeira hora, mas motivos vários impediram-me de escrever dentro do prazo. Foi escrito ontem, porque a ideia bailava por aqui. Registe-se).
4 comentários:
Absolutamente arrebatador e tocante... Adorei!...
Sem palavras. Apenas a nota para uma emoção um sentir de identificação no encontro de um raro olhar profundo e diferente do qual às vezes procuramos na espuma dos dias. Numa criança que cativa com o olhar e encanto com o que lhe brota das mãos... é tão belo...
Magnífico texto!...
Um beijo terno também do Herói, claro....
impossível não estremecer com a leitura deste texto fantástico, estou verdadeiramente encantada.
PARABÉNS!
a emoção de ver .. ver perfeitamente e com clareza .. raro para mim este sentimento quanto leio * .. perfeitamente sentido hoje aqui
Obrigada sine amiga :)
Beijinho
Se bem me lembro, este teu conto era melhor que os três ou quatro seleccionados.
Beijinhos.
Enviar um comentário