reflexos de vida no silêncio espelhado da água. fragas de vidro em descontinuidades do olhar ...

domingo, outubro 15, 2006

Carlos Reis
Engomadeiras

Hoje acordei assim. Com um prolongamento de ferro no braço direito. De ferro já só têm o nome, que eles agora são feitos de ligas leves para facilitar a tarefa! A música ou a televisão para preenchimento dos neurónios e alisamento das rugas que se cravam no meio da testa minimizam a monotonia do trabalho.E mãos à obra! Se à música damos ouvidos, do ferro fazemos bailarino do Bolshoi em coreografias rebuscadas percorrendo o palco da tábua, envolto em nuvens de fumo para criar um ambiente místico a condizer com a melodia. Se da televisão vem a distracção do momento...depende. Hoje andei com os Gatos Fedorentos em busca do sítio "onde se encontram gajas boas, memo boas, daquelas memo munta boas, que um gajo olha e diz : eh, pá! São memo munta boas!"Não cheguei a sitiá-las. Eles também não. Afinal a gaja boa que eles viram era uma bichona. Acontece!

Mas para entretenimento dei por mim cantarolando "Água fria da ribeira, água fria que o sol aqueceu....seis corpetes, um avental, sete fronhas e um lençol, seis camisas..." Um enxoval completo!

Lembrei-me das trouxas de roupa que mulherões de antigamente, levavam à cabeça ou em carroças, para os lavadouros municipais e para as valas e ribeiras. As mulheres daquele tempo sabiam caminhar numa postura correctíssima, à força de transportarem fosse o que fosse em cima de uma rodilha. Tinha técnica a rodilha, tecida que era no tear dos dedos e, no remate, a arte de resistir à caminhada árdua. Sempre alegres, faceiras, de rosto corado pelo sol. Cantarolando ao desafio, enquanto a roupa corava.

Tudo lhes saía do corpo num esforço desmesurado, sem máquinas de lavar, sem secadores de roupa, sem ferros eléctricos com caldeira e a vapor, com borrifadores integrados. O duro trabalho agrícola, desde a infância, pacificou-as na obediência, sacrifício, madrugadas, labores de sol a sol.

Roupa dobrada e borrifada, brasas no ferro, era pela calada da noite, enquanto todos dormiam, que passavam a roupa alva de brancura, em cima de mesas acolchoadas de cobertores velhos que amparavam os tecidos e suavizavam a passagem do ferro. Era na valentia de carácter que se distinguiam.

Tenho de ligar ao Ricardo Araújo...afinal já sei onde se encontram as mulheres boas, mesmo muito boas, que só de pensar nelas acho que foram do melhor!

3 comentários:

Anónimo disse...

Fez-me lembrar as minhas visitas ao Carril... quando aquelas águas desconheciam o significado da palavra "poluição" e a minha avó e outras mulheres iam até lá lavar cobertores e outras peças de maiores dimensões no final do Verão (tempo de limpezas maiores).

Anónimo disse...

É bom haver alguém com memória colectiva.Afinal a história também se escreve com as actividades dos 'Deuses Menores', que nesta 'história' se tratavam das 'obreiras'da instituição 'familia'. Tanto que as vimos, tanto que aprendemos a respeitá-las, com o seu suor 'familiar' para além do trabalho muitas vezes remunerado a dez reis de mel coado

sinédoque disse...

Uma homenagem simples mas muito sentida a todas essas mulheres que preenchem o nosso imaginário.
Agradeço a vocês: travessa e lavadeira, por partilharem comigo estas recordações e por as sentirem da mesma forma que eu.