reflexos de vida no silêncio espelhado da água. fragas de vidro em descontinuidades do olhar ...

domingo, agosto 27, 2006

Michael Parkes

A chave do amor

O ninho de cegonhas, ao alcance da vista, era promessa de fecundidade certa. Adulto, vacinas em dia, exemplar de peculiar formusura inscrita nos genes e acentuada pelos desvelos de que sempre fora alvo durante a sua afortunada existência, ali estava ele, madrugando docemente com especiais cuidados e enlevos para aquela hora da manhã.
Entre espreguiçadelas e beijos, se ia retirando as remelas insistentes, o cerume pastaso que dos ouvidos faz leito, mas com tanto aprumo, que do equilíbrio se despegava com tonturas prazeirosas e esgares de boca e de olhos que assentavam mal a quem a corte se prepara para fazer.
Despegado da alta costura e em nada necessitando dela, pelo ditoso e abençoado corpo, deu-se lustro ao polido fato, bem escovado de poeiras e de algum pêlo desdenhoso de seu dono. Um pouco de exercício para desentorpecer, necessidades matinais feitas com os descuidos repisados a que se habituara, refeição ligeira para dejejum rápido e, estava pronto a receber a menina que os seus olhos haviam de amar.
A meio da manhã, chega a bendita e esperada criatura. Alta, esguia, morena de olhos e de penugens, dócil no trato, sem ar de pêlo na venta, mas demasiado tímida nas relações, para quem apresenta pedigree de tão alto gabarito.
Ele bem tentou e a tentou, com tudo o que a sua curta experiência nestas coisas do amor, lhe permitia fazer. Mas ela nada. Fugidia. Receosa. Dada a namoros com vadios de desmérito... e agora isto!
Perdeu a cabeça! Possante como é, não desperdiçou esforços para dela se aproximar, não obstante ouvir as recomendações de que devia ser paciente e comedido. Mas depressa deixou de escutar quem quer que fosse, já com o engodo erecto e a lábia que Deus lhe deu. Arreganharam-se os dentes, coisa feia de se ver em seres de origem e porte finos, e lá se acalmaram os ânimos, levando cada um para seu lado entre consolações e promessas de dias melhores. Mais receptivos. Este era o primeiro encontro e nada havia a temer!
Nesta coisa do amor, os géneros ditam diferenças, como se sabe. Se eles são dados a intimidades sem precisão de prelúdios, elas requerem envolvência, romantismo, cumplicidades consolidadas e com provas de afecto, que justifiquem o acto.
A chave do amor não se encontra facilmente! Não se abre o coração de uma donzela, por canina que seja, com um " Ó pra mim que sou lindo! Olha o que estás a perder!".
Pois bem!Em mim, das cegonhas fica o mito. Ainda não foi desta que o meu cão conseguiu acasalar, mas guardado está o bocado para quem o há-de comer!

4 comentários:

Anónimo disse...

O "bichinho" tem de esforçar-se mais para conquistar a donzela, que ao que parece não se mostrou "fácil". Pois é, as coisas mais saborosas, geralmente são as que nos dão mais trablho a conquistar. Diga ao canino que não desista...vai ver como toda a família se vai deliciar com o resultado e o seu fiel amigo também.

regato disse...

Pelo que se viu, trabalho de "casamenteiro" já deu o que tinha a dar...

Dê liberdade aos "noivos" e uns dias para se conhecerem melhor... o resto virá (ou não)...

Anónimo disse...

Depois de ler e reler o seu magnifico texto, eis que a dúvida me assaltou: ser comedido ou impetuoso ? Sim porque nestas coisas do amor nunca se sabe como a outra metade reagirá. Efectivamente tem 'bicho' que não é dado a 'namoros' queirozianos ...(longos,dengosos,contemplativos,enfim uma 'mariqueira'), por outro lado têm 'bicho' que adora o 'foi tão bom não era?).
Como resolver esta questão?
Parece não ser importante, mas eu não penso assim, pois hoje as relações que são tão efémeras, se começam mal, dificilmente se consertam. Um tema a debater...

sinédoque disse...

Agradeço-lho o comentário, mas espero que o meu cão consiga levar esta a tarefa de ser pai de uma ninhada de cachorros lindos. Eu como dona ficaria também muito feliz se tal acontecesse. Vamos ver!
Quanto à efemeridade das relações que hoje se verifica, penso que é fruto da velocidade com que se vive a vida, fazendo-me lembrar a a história de um tal Domingos Afoito que viveu cem anos e morreu aos dezoito.
Parece que as pessoas são cada vez mais egoísta e individualizam muito os sentimentos dentro de uma relação. SEm perder a sua individualidade deve haver, eu acho, um investimento afectivo diário,apostando no crescimento, valorização e realização do outro.Daquele que sentimos ao nosso lado.