O cacto vivia ali há muitos séculos. Tantos que perdeu as horas da estória entre iberos e ocidentais globalizados, numa multiculturalidade sem nexo. Era pequeno e de um verde fresco e translúcido como a transparência das almas perdidas e achadas entre portais de eternidade. De quando em vez, renasciam-lhe flores minúsculas e cintilantes como sonhos de sol. Não havia estações que as trouxessem ou murchassem. Eram espontâneas como a luz de cada dia. Esperadas. Quando as neblinas ausentassem dos céus baixos como tectos sem casa. Orlas de deserto serviam-lhe de sítio, ao sul do rio que divide ao meio a civilização. Passavam as gentes indiferentes ou não à sua presença e demoravam-se em acampamentos de vida que o incluíam nas auroras boreais dos dias e nos festins carnavalescos do negrume da sombra sem dono.
Uns tiravam-lhe as flores e enfeitavam corações de egos produtivos de searas, outros empurravam-lhe os picos inofensivos de dor alheia e cravavam-nos na carne sangrada de seiva gritada de rubro.
Certos dias, sentia o corpo diminuto alargar-se em enxurradas de dor e, nos músculos fibrosos, crescerem-lhe quistos de liberdade sem comas. Transpirava por cílios agrestes rasgados na pele o suor das veias e, na retina dos olhos, esculpiam-se rugas que se escoavam na pele como gotas de neve gelada coada pelo sol. Eram as raízes a perderem a humidade da certeza de estar, embora oásis longínquos desaguassem em estuários de alquevas na sua boca entupida de palavras sem língua, de língua sem saliva, de céu sem palato. Sabia-lhe a mel de cicuta a bebida sorvida em cálice silencioso forjado na areia do corpo onde permanecia. Os olhos fechados de testas franzidas por prensas, reflectiam a luz do trovão apagada em raio invertido num buraco negro.
Pegou nos sapatos das raízes e gastou as solas no couro das dunas escaldantes de desertos-jamais e em sarkosys sem medo cumpriu o Dakar.
1 comentário:
Espero que tenha encontrado a sua Bruni e que todas as formas terror se tenham derretido para sempre...
Um beijo Infinito dos dois!!!
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