reflexos de vida no silêncio espelhado da água. fragas de vidro em descontinuidades do olhar ...

quinta-feira, março 26, 2009

A princesa dos sonhos


Num país distante para lá da casa do vento, numa curva do tempo, entre as montanhas de sol e brumas, nasceu uma princesa de olhos tristes. A surpresa do olhar profundo e triste daquele bebé trazia consigo um segredo temível para quem a olhava de longe ou perto. Daqueles olhos grandes, de um castanho amendoado, soltavam-se espirais de nuvens cinzentas, que subiam no ar sempre que um adulto se aproximava dela.

No dia do seu nascimento, a manhã acordara cedo, com a nostalgia de ser Inverno,húmido e frio. As paredes do castelo onde nasceu, solitariamente desabrigadas, vestiram-se de trepadeiras que taparam as portas e as janelas. E quando se ouviu o primeiro choro da princesa, as nuvens taparam o sol para nunca mais se avistar naquele recanto do reino.

Cresceu num quarto forrado em algodão em rama para absorver a humidade que lhe saía dos olhos e, não havia médico, nem remédio capaz de secar aquela fonte imensa de vapor de água salgado.O pai da princesa era meio homem, meio leão e, todos os dias, saía cedo do castelo para ir caçar.Raramente se lembrava que a princesa existia. Quando ele chegava, ela ouvia a porta do castelo bater com força e corria para junto da rainha mãe que lhe soprava carinhosamente a nuvem acabada de se formar no olhar.

Às vezes, ela procurava o rei seu pai e falava-lhe das cores do seu mundo acabado de nascer e de como já conseguira deixar o céu azul durante toda a manhã, nos jardins do castelo. Mas as nuvens que se formavam enquanto falava, irritavam o pai que lhe rugia com os olhos vermelhos de sangue e raiva. Ela arrefecia nas nuvens cinzentas de chumbo que a envolviam e voltava para o seu trono.

O trono da princesa era alto demais para ela, fora construído a pensar na sua vida adulta. Para subir para lá ela sentia-se anã. Segurava-se com força e depois de muito se esforçar e não conseguir, vinha uma ama que a agarrava ao colo e a deixava sentada lá, com as pernas penduradas como pêndulos e os pés sem tocar no chão. Era ali o único lugar, onde conseguia espreitar o mundo dos adultos sem os achar gigantes e pensava se algum dia conseguiria entendê-los. Segurava-se bem para não cair e ficava ali horas a fio, a dobrar ideias, a falar com os seus botões, a desfiar rosários de palavras que nunca disse, a sonhar alegrias, a construir nuvens claras com formas de animais e figuras bizarras... chegava a sorrir. Quando isto acontecia, as figuras-nuvens evaporavam-se no ar como por magia. No seu trono dos sonhos, a princesa chegava a sentir-se feliz.

A princesa de olhos tristes foi crescendo e começou a espreitar o mundo ao seu redor, Reparava como as outras crianças da sua idade brincavam felizes nas ruas pobres e sujas do seu reino, de como se divertiam nas tardes frias de Inverno, durante as fracas alveiradas de sol...de como se empoeiravam de terra quente , durante os grandes dias de Verão... enquanto ela ficava sentada no trono, a tecer sonhos de rostos felizes,a desenhar estrelas cadentes que embelezassem as palavras, a pintar arco-íris cheios de aventuras e surpresas,a sonhar com olhos sem nuvens...

Um dia a princesa, saiu do castelo, atrevendo-se a ver a vida para lá daquelas paredes onde permanecia prisioneira do seu infortúnio. Quis saber como eram as pessoas para lá dos vultos que não ousavam olhar as ameias do seu mundo.Era um dia de Outono frio e gelado,quase Inverno. O vento agreste fustigava o corpo em golpes duros e impiedosos, mas rente à pele e ao coração, a princesa levava a esperança de encontrar alguém que a ensinasse a falar sem nuvens, a respirar os sonhos que acalentava, a descobrir o sol por detrás das montanhas de brumas em que se movia.Tremiam-lhe as pernas de insegurança, levava consigo os olhos grávidos de vapor de água e, nas nuvens cinzentas de chumbo, o frio aproximava as gotículas e construía alvos cristais que deslizavam para a terra. Desciam e cobriam de branco o que antes reflectia o negrume do céu.

As ruas estavam vazias de gente, não se avistava sequer um animal nas redondezas e ela continuava a andar como se soubesse o que procurava, como se tivesse a certeza que iria encontrar alguém que a ajudaria. Por fim, acabaram as casas e ela continuou a caminhada pelo pequeno bosque sombrio que ladeava o sopé da montanha da qual nunca avistara o cume.

Cansada e ansiosa, sentou-se numa pedra a descansar um pouco. Só o vento falava naquelas paragens e os ramos das árvores, dançavam pesados com copas de neve que se avolumavam. De repente, avistou um rapazinho que tremia apesar do bom agasalho que lhe cobria os ombros. Era alto e magro, as madeixas de cabelo revoltavam-lhe ao vento, permanecia de olhos fechados e expunha a cara para o céu, como que suplicando uma ajuda dos deuses. Tinha porte de príncipe, esbelto e audaz, e nas suas mãos segurava um lápis e um papel molhado onde estava desenhado um sol.

- Olá! - disse a princesa dos sonhos.

Ele abriu os olhos e esboçou um sorriso triste, enquanto se levantada para a cumprimentar.

- Olá, princesa! Sei quem tu és porque te vejo, às vezes, enquanto passeias no teu jardim.- disse o rapaz.

Enquanto falavam um com o outro, nuvens flutuavam de lá para cá. Sem nenhum dos dois se incomodar com o que acontecia, perceberam que ambos tinham sido amaldiçoados pela mesma doença. Todos os dias, a partir daí, se encontravam para conversar. Adivinhavam palavras, antecipavam sentimentos um do outro, sabiam de cor o sabor e cheiro das nuvens, o perfume salgado da solidão... Ele mostrava-lhe os desenhos que fazia para tecer a sua alma e as dos outros e ela as palavras que escrevia como luto dos sonhos inacabados.Ficaram amigos para a vida.

A cada dia se abria mais clareiras nos seus olhos, havia momentos em que tudo se dissipava no horizonte e uma claridade próspera os envolvia. Sorriam, nesses momentos e, dos olhos tristes de ambos, nasciam brilhos de tonalidades surpreendentes.Acreditaram que juntos sarariam aquele mar numa evaporação definitiva. Simultaneamente, ou à vez, encorajavam a vontade quando algum fraquejava. Arriscaram o convívio com outras pessoas para confirmarem a sua cura. Era preciso que cada um acreditasse que essa ligação era possível. Que os outros gostariam deles mesmo que o densidade nublosa surgisse de quando em vez.

Não se sabe ao certo o que aconteceu aos dois. No entanto, a princesa passou a acreditar nos seus sonhos. O rapaz, determinou-se na sua afirmação.

Sabe-se que da última vez que se viram, um céu azul cobria o mundo, cheio de sóis quentes e sem nuvens...